Jesus usa uma imagem bastante forte para ilustrar a gana do discípulo pela justiça: Fome e sede. O espírito do discípulo alimenta-se da justiça com a mesma gana que o corpo precisa de água e pão. O desejo de justiça, na vida do discípulo funciona como um apetite, existe com naturalidade, vem das entranhas. A falta de apetite pela justiça pode ser um sinal de enfermidade espiritual.
À semelhança das virtudes anteriores, a fome e sede de justiça formam uma condição espiritual, uma propriedade na natureza de ser discípulo de Jesus Cristo. Mateus registra no Sermão do Monte, vários enfoques sobre como não deveria ser a justiça do discípulo.
As faces da justiça
“Se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus...” (Mat. 5:20).
“GUARDAI-VOS de fazer a vossa justiça diante dos homens, para serdes vistos por eles;” (Mat. 6:1).
Há portanto, alguma espécie de justiça que Jesus está afirmando não ser a justiça pela qual o discípulo deve ter apetite. No caso dos escribas e fariseus, todos sabemos que eles possuíam um tipo de justiça superficial, legalista e meramente punitiva. No texto de Mat. 6:1, alguns tradutores preferiram em vez de justiça, termos como: “boas obras” ou “esmola”:
“GUARDAI-VOS de fazer a vossas boas-obras diante dos homens”
ou
“GUARDAI-VOS de fazer a vossa esmola diante dos homens”
Neste caso a justiça do religioso traduz-se em benevolência ao necessitado. Todavia, mesmo que esmola ou boas obras possam também representar atos de justiça, aqui aparecem apenas como instrumentos de propaganda pessoal – serem vistos pelos homens – diz o texto. Jesus está condenando quem pratica atos de piedade como forma de repassar uma imagem daquilo que não se é. Assim é a justiça dos religiosos, e não é portanto, esse tipo de justiça a que Jesus está se referindo.
Então, de que justiça Jesus estava falando, se a justiça do discípulo deveria exceder a dos escribas e fariseus, e se não deveria ser semelhante a justiça dos homens? Que espécie de justiça está sendo enfocada?
Lembremos que os que têm fome e sede de justiça são ao mesmo tempo pobres de espírito. Logo, não possuem em si mesmos qualquer justiça própria. Os pobres de espírito reconhecem que toda a justiça que possuem e praticam vem de Deus. Lembremos também que Jesus está retomando cada conceito na tentativa de resgatar e ampliar cada um deles – não vim revogar a lei, mas cumpri-la (ampliá-la). No caso da justiça, em que sentido Jesus está ampliando-a?
É importante, para o inicio de nossa reflexão, levar em consideração a opção de Jesus em andar também com publicanos e pecadores, tratando-os com amor, graça e misericórdia. Não deveria ele, andar apenas com os “santos”, cuja ética parecia satisfazer todas as exigências da comunidade religiosa?
A justiça de Deus
No Antigo Testamento, a justiça de Deus é apresentada como um ato da Sua exclusiva graça. A justiça é percebida na perspectiva da redenção e salvação e não apenas da punição e condenação. Assim, aquele que é salvo é salvo por causa da justiça de Deus e o que é condenado, é condenado por causa do seu próprio pecado. Em geral, nos textos do Antigo Testamento que abordam sobre a justiça de Deus, se percebe neles o caráter punitivo da justiça, como conseqüência das atitudes dos ímpios. Em situações de injustiça, os textos apresentam Deus, muito mais como o salvador dos humildes, marginalizados, oprimidos – aqueles que inclusive, em muitos casos, são considerados pelos seus opressores, como sendo “os fora da lei”.
O justo na Bíblia é alguém alcançado pela graça de Deus, sem as obras da lei. Evidenciando que na relação: Deus e seres humanos, a justiça assume um caráter ético e moral bastante diferente das legislações: homem x homem. Dizer que a justiça de Deus é diferente, não significa dizer que é inferior a justiça humana. Mas, o fato é que: enquanto a justiça nas relações humanas é geralmente meritória, legalista, punitiva; a justiça Divina é também redentiva. Justiça e salvação chegam a ter o mesmo sentido. Há um texto de Paulo que traz muita luz sobre a manifestação da justiça de Deus em relação a humanidade.
Mas agora se manifestou sem a lei a justiça de Deus, tendo o testemunho da lei e dos profetas; Isto é, a justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo para todos e sobre todos os que crêem; porque não há diferença. Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus; Sendo justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus. Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus; Para demonstração da sua justiça neste tempo presente, para que ele seja justo e justificador daquele que tem fé em Jesus. Onde está logo a jactância? É excluída. Por qual lei? Das obras? Não; mas pela lei da fé. Concluímos pois que o homem é justificado pela fé sem as obras da lei. É porventura Deus somente dos judeus? E não o é também dos gentios? Também dos gentios, certamente. Se Deus é um só, que justifica pela fé a circuncisão, e por meio da fé a incircuncisão. Anulamos, pois, a lei pela fé? De maneira nenhuma, antes estabelecemos a lei (Rom 3:21-31).
Os judeus construíram ao longo dos anos um conjunto de mecanismos legalistas, que lhes propiciavam uma falsa sensação de merecedores dos favores de Deus. Um tipo de justiça que não corresponde à mesma referida por Paulo. Enquanto a justiça judaica punia, a de Deus pretendia redimir, sob a paciência de Deus. Paulo está resgatando o fundamento da graça – favor de um Deus soberano, por pequeninos que nada podem lhe dar em troca. Assim, todo orgulho, toda jactância são banidos, não havendo mérito ou justiça própria em ninguém. Veja o argumento conclusivo de Paulo: “Porque, se Abraão foi justificado pelas obras, tem de que se gloriar, mas não diante de Deus (...) Ora àquele que faz qualquer obra não lhe é imputado o galardão segundo a graça, mas segundo a dívida. Mas àquele que não pratica, mas crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada como justiça.” (Rom. 4:2, 4 e 5).
Paulo não está falando de um conceito novo. Recorre a um texto antigo de Davi para consolidar seu argumento: “Assim também Davi declara bem-aventurado o homem a quem Deus imputa a justiça sem as obras, dizendo: Bem-aventurados aqueles cujas maldade são perdoadas, e cujos pecados são cobertos. Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não imputa o pecado.
Observando com as lentes de Paulo, justo é aquele que é justificado por Deus de todos os seus pecados. Essa é a justiça primária que os felizes têm fome e sede. Eles reconhecem, que não possuem nenhum direito na relação com Deus. E por isso, sentem-se vazios, famintos, sedentos de uma justiça que é, antes de tudo, paciente, misericordiosa, cheia da graça de Deus. Justiça que, como refluxo da justiça de Deus, alimenta o discípulo de sonhos e esperanças, lhe mantém apetitoso de novos valores morais e éticos. Fome e sede de ver os pobres de espírito herdando a nova sociedade alicerçada na santidade de Deus.
A justiça nas relações humanas
Na perspectiva de Jesus, os “realizados com a vida”, por terem fome e sede de justiça, buscam em primeiro lugar o Reino de Deus e a Sua justiça. Conforme vimos anteriormente, a justiça de Deus é bem mais ampla do que as concepções humanas de direito. Os paradigmas da justiça do Reino são baseados em valores como a mansidão, sensibilidade, misericórdia, amor. Mas, dizer que a justiça de Deus é diferente, não significa dizer que é menor do que o mínimo exigido pela justiça humana, como direito a habitação, alimentação, saúde, educação, lazer, liberdade de exercer a vocação humana. Alguns desses direitos são direitos de se viver a vida como qualquer animal. Habitação e alimentação, por exemplo, antes de serem um direito humano, são um direito animal. E, mesmo que a fonte da felicidade do discípulo não dependa de condições externas, a sua felicidade plena se concretiza num ambiente, aonde as condições mínimas sejam suficientes para a realização plena de todos os seres humanos.
A fome e sede de justiça do discípulo traduz-se na busca e manifestação da justiça entre as pessoas. Na igualdade de dignidade no seio familiar, nas relações de direito justo para todos. Referimo-nos ao princípio bíblico de se requerer mais e responsabilizar mais, a quem tem mais, a quem mais recebeu ou conquistou.
Espero que você esteja acompanhando bem a nossa forma de raciocínio. Falamos primeiramente sobre a justiça na relação do ser humano com Deus. E aí, não temos nada a reivindicar. Ele nos acolhe e justifica pela Sua infinita graça. Mas, há uma outra dimensão da justiça, que se expressa nas inter-relações humanas. E neste caso o discípulo canta com o profeta Amós: “...corra o juízo como as águas; e a justiça, como ribeiro perene”. (Am. 5:24).
No Sermão do Monte quando Jesus encerra o conjunto das bem-aventuranças faz a seguinte advertência aos discípulos: “Bem-aventurados, sois vós, quando por minha causa vos perseguiram e mentindo disserem todo o mal contra vós, regozijai-vos e alegrai-vos porque é grande o vosso galardão nos céus. Pois assim, perseguiram aos profetas que viveram antes de vós”. (Mt. 5:11,12). Os discípulos de Jesus são os irmãos históricos dos profetas. Entender o ministério e mensagem dos profetas, para a partir daí, elucidar a missão dos discípulos, estava implícito nas palavras de Jesus. Na mensagem dos profetas, não há como se fugir da natureza ética da justiça. Nos profetas encontramos várias pistas da justiça relacionada a questões étnicas, políticas, sociais e econômicas.
No chamado “ciclo de Elias e Eliseu” houve confrontação aberta dos dois profetas contra monarcas injustos e seus exércitos opressores. Reagiram as injustiças do rei Acabe e sua mulher Jezabel. Defenderam viúvas e supriram suas necessidades. Fizeram promessas de esperança diante da aflição e desencanto do povo de Israel e Samaria. Isaías, o profeta das boas novas, o evangelista do Antigo Testamento, enquanto anunciava sua esperança escatológica, denunciava as distorções e cinismo dos religiosos (Is. 1:117), incoerência dos políticos (Is. 10:1,2), denunciava a acumulação de bens e desigualdades sociais (Is.5:8), repudiava a depravação moral e as ambigüidades éticas (Is. 5:18-23). O mesmo aconteceu com Jeremias, Amós e muitos outros. Todos foram perseguidos, maltratados; alguns, eliminados da vida.
Logo, a fome e sede de justiça do discípulo é também semelhante a fome e sede de justiça dos profetas, seus irmãos históricos. Portanto, da mesma forma como os profetas, alcançados pela graça de Deus, responderam de maneira ética as demandas dos seus dias, o discípulo contemporâneo tem a mesma responsabilidade.
Infelizes os fastiosos, os sem apetite pela justiça, os indiferentes, acomodados. Infelizes os que não escutam o clamor do pobre e oprimido, não pleiteiam por sua causa.
Felizes os apetitosos, os insaciáveis; os que nunca se fartam de nutrirem-se da justiça Divina.