quarta-feira, 5 de outubro de 2011

A Mensagem da Cruz

Achamos que a cruz é a vitória do diabo e que a ressurreição é a vitória de Deus. Não percebemos a mensagem da cruz como espaço da ação de Deus, tanto quanto a ressurreição. A cruz é o sinal da graça, da bondade e do amor de Deus.
Às vezes usamos cruz e ressurreição como coisas opostas. Porém, na cruz há triunfo do amor, da vitória, da não-vingança. Há triunfo do altruísmo de Jesus, há triunfo daquele que não se faz de vítima e acolhe aqueles que estão ao seu redor. Deus não age com base no jeito de ser do outro, mas sim nos atributos e nas virtudes dele mesmo.
Não reprovo que a igreja coloque uma cruz no templo, desde que aquela considere o que esta diz: Levo comigo a possibilidade de morte. O amor é santidade e serviço; não é apenas um sentimento profundo, mas também capacidade de entrega total. A marca da santidade da igreja está na sua capacidade de amar. “Nisto, conhecerão todos que são meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros” (Jo 8.31).
Comunicamos o amor de Deus com palavras e com obras. E o paradigma disso é a graça. Uma diaconia (serviço) fundamentada e inspirada pela graça não alimenta expectativas de troca. Quem ama age por conta dessa fonte inesgotável dentro de si mesmo. Os empobrecidos, espoliados e injustiçados não se tornam devedores dos serviços de misericórdia e justiça realizados pela igreja de Jesus Cristo. Uma diaconia batizada pela graça é um via de realização de mão dupla. Quem tem acesso aos bens necessários à vida socializa, pela graça, esses bens e desfruta, pela mesma graça, dos bens virtuosos dos pobres. Os pobres têm me ajudado a entender melhor os códigos do evangelho. Eles têm tornado mais fácil para eu compreender a manjedoura e por que Jesus entrou em Jerusalém montado num jegue.
A partir dessa prática de serviço do Senhor, podemos pensar em filantropia, na educação, nas associações, nas cooperativas de comércio solidário, na promoção da justiça, na defesa das pessoas à margem da sociedade, na luta contra a exploração sexual infanto-juvenil e o abuso de crianças em suas próprias casas.
Somos uma gota d'água sobre um oceano de        problemas, mas inevitavelmente a base da nossa missão social é o amor. Fomos alcançados pelo amor de Deus, e como refluxo queremos amar uns aos outros. “Mas Deus prova o Seu próprio amor para conosco, em que Cristo Jesus morreu por nós, sendo nós ainda pecadores.” Esse versículo diz respeito ao amor de Deus por nós, mas também é um desdobramento na nossa vida.

Pr. Carlos Queiroz

O resgate da Esperança

Tenho caminhado por muitos lugares e visitado igrejas das mais variadas confissões. E tenho presenciado manifestações inconfundíveis do verdadeiro Evangelho. O Evangelho é, por natureza, de difícil comercialização. Não se consegue vender virtudes; jamais conseguiremos vender o projeto da cruz, ou alienar por determinada quantia o perdão divino. Quem, afinal, pagaria para entregar a face ao perverso?
.Quantas pessoas estariam dispostas a pagar para sofrer por amor a Cristo? Quantos de nós pagaríamos para nos engajar na causas pela justiça? E quantos ricos aceitariam o Evangelho se tivessem que entregar metade dos seus bens aos pobres e ainda pagar, quatro vezes mais, àqueles a quem houvessem defraudado?
Encontro comunidades que vivenciam com profundidade a natureza do Evangelho. Uma delas é a Igreja Batista de Bultris, em Olinda (PE). É uma comunidade de pessoas, em sua maioria, pobres. Por opção, aqueles crentes construíram um templo sem janelas e portas, com o único propósito de servir como espaço de abrigo aos transeuntes sem-teto.
Ali, os empobrecidos do bairro são acolhidos. A congregação participa dos conselhos municipais e possui núcleos para formação de bancos comunitários em parceria com entidades de educação e serviço para empreendedores pobres. A igreja em Bultrins promove anualmente um fórum de prática e reflexão teológica para representantes de várias comunidades cristãs do Nordeste – assim, consegue passar essa visão e influenciar a vida de muitas outras pessoas.
Conheço de perto também a organização Crianças do Brasil para Cristo, o CBC, formada por membros de várias igrejas em Fortaleza (CE). O CBC não recebe apoio de nenhuma instituição internacional.
Todo custo para apoio escolar, alimentação e socialização de crianças e adolescentes através de atividades esportivas e culturais são provenientes de doações individuais e serviços voluntários, beneficiando mais de 300 menores. Vários daqueles jovens ingressaram na universidade; outros abandonaram a violência e retomaram o caminho dos estudos.
Trata-se de pequenas iniciativas? Por certo. Mas, somadas, elas podem nos surpreender por seus resultados. Sem dúvida alguma, os cristãos têm potencial para fazer muito mais. Há ainda muitos recursos sub-utilizados.
Os dados estatísticos nos indicam que a grande massa evangélica brasileira é ainda composta pela soma das pequenas comunidades, e não pelos grupos evidentes na mídia.
Elas estão distribuídas nas periferias urbanas; nas encostas dos morros; nas regiões ribeirinhas; no semi-árido nordestino. São crentes em Jesus que moram à beira do caminho – à margem dos direitos e à beira da miséria; à margem dos hospitais e à beira da morte; à margem das escolas e à beira da ignorância; à margem do trabalho e à beira da fome.
Por outro lado, esta parte do Corpo de Cristo permanece à margem da competitividade, mas diante da solidariedade; à margem da acumulação, mas vizinha da partilha; à margem do lucro, mas próxima da gratuidade; à margem do individualismo, mas de braços abertos para a fraternidade. Eles me ajudam a interpretar e entender a manjedoura, a encarar o sofrimento, a encontrar no calvário sinais de vida e ressurreição.
Eles podem me trazer lembranças das coisas que resgatam a esperança da vida. Deus continua se revelando de maneira estranha e em lugares imprevisíveis – e nós não percebemos.

Pr. Carlos Queiroz

segunda-feira, 28 de março de 2011

Bem-aventurados os que tem fome e sede de Justiça, porque serão fartos

Jesus usa uma imagem bastante forte para ilustrar a gana do discípulo pela justiça: Fome e sede. O espírito do discípulo alimenta-se da justiça com a mesma gana que o corpo precisa de água e pão. O desejo de justiça, na vida do discípulo funciona como um apetite, existe com naturalidade, vem das entranhas. A falta de apetite pela justiça pode ser um sinal de enfermidade espiritual.

À semelhança das virtudes anteriores, a fome e sede de justiça formam uma condição espiritual, uma propriedade na natureza de ser discípulo de Jesus Cristo. Mateus registra no Sermão do Monte, vários enfoques sobre como não deveria ser a justiça do discípulo.
As faces da justiça
“Se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus...” (Mat. 5:20).
“GUARDAI-VOS de fazer a vossa justiça diante dos homens, para serdes vistos por eles;” (Mat. 6:1).
Há portanto, alguma espécie de justiça que Jesus está afirmando não ser a justiça pela qual o discípulo deve ter apetite. No caso dos escribas e fariseus, todos sabemos que eles possuíam um tipo de justiça superficial, legalista e meramente punitiva. No texto de Mat. 6:1, alguns tradutores preferiram em vez de justiça, termos como: “boas obras” ou “esmola”:
“GUARDAI-VOS de fazer a vossas boas-obras diante dos homens”
ou
“GUARDAI-VOS de fazer a vossa esmola diante dos homens”
Neste caso a justiça do religioso traduz-se em benevolência ao necessitado. Todavia, mesmo que esmola ou boas obras possam também representar atos de justiça, aqui aparecem apenas como instrumentos de propaganda pessoal – serem vistos pelos homens – diz o texto. Jesus está condenando quem pratica atos de piedade como forma de repassar uma imagem daquilo que não se é. Assim é a justiça dos religiosos, e não é portanto, esse tipo de justiça a que Jesus está se referindo.
Então, de que justiça Jesus estava falando, se a justiça do discípulo deveria exceder a dos escribas e fariseus, e se não deveria ser semelhante a justiça dos homens? Que espécie de justiça está sendo enfocada?
Lembremos que os que têm fome e sede de justiça são ao mesmo tempo pobres de espírito. Logo, não possuem em si mesmos qualquer justiça própria. Os pobres de espírito reconhecem que toda a justiça que possuem e praticam vem de Deus. Lembremos também que Jesus está retomando cada conceito na tentativa de resgatar e ampliar cada um deles – não vim revogar a lei, mas cumpri-la (ampliá-la). No caso da justiça, em que sentido Jesus está ampliando-a?
É importante, para o inicio de nossa reflexão, levar em consideração a opção de Jesus em andar também com publicanos e pecadores, tratando-os com amor, graça e misericórdia. Não deveria ele, andar apenas com os “santos”, cuja ética parecia satisfazer todas as exigências da comunidade religiosa?

A justiça de Deus
No Antigo Testamento, a justiça de Deus é apresentada como um ato da Sua exclusiva graça. A justiça é percebida na perspectiva da redenção e salvação e não apenas da punição e condenação. Assim, aquele que é salvo é salvo por causa da justiça de Deus e o que é condenado, é condenado por causa do seu próprio pecado. Em geral, nos textos do Antigo Testamento que abordam sobre a justiça de Deus, se percebe neles o caráter punitivo da justiça, como conseqüência das atitudes dos ímpios. Em situações de injustiça, os textos apresentam Deus, muito mais como o salvador dos humildes, marginalizados, oprimidos – aqueles que inclusive, em muitos casos, são considerados pelos seus opressores, como sendo “os fora da lei”.
O justo na Bíblia é alguém alcançado pela graça de Deus, sem as obras da lei. Evidenciando que na relação: Deus e seres humanos, a justiça assume um caráter ético e moral bastante diferente das legislações: homem x homem. Dizer que a justiça de Deus é diferente, não significa dizer que é inferior a justiça humana. Mas, o fato é que: enquanto a justiça nas relações humanas é geralmente meritória, legalista, punitiva; a justiça Divina é também redentiva. Justiça e salvação chegam a ter o mesmo sentido. Há um texto de Paulo que traz muita luz sobre a manifestação da justiça de Deus em relação a humanidade.
Mas agora se manifestou sem a lei a justiça de Deus, tendo o testemunho da lei e dos profetas; Isto é, a justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo para todos e sobre todos os que crêem; porque não há diferença. Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus; Sendo justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus. Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus; Para demonstração da sua justiça neste tempo presente, para que ele seja justo e justificador daquele que tem fé em Jesus. Onde está logo a jactância? É excluída. Por qual lei? Das obras? Não; mas pela lei da fé. Concluímos pois que o homem é justificado pela fé sem as obras da lei. É porventura Deus somente dos judeus? E não o é também dos gentios? Também dos gentios, certamente. Se Deus é um só, que justifica pela fé a circuncisão, e por meio da fé a incircuncisão. Anulamos, pois, a lei pela fé? De maneira nenhuma, antes estabelecemos a lei (Rom 3:21-31).
Os judeus construíram ao longo dos anos um conjunto de mecanismos legalistas, que lhes propiciavam uma falsa sensação de merecedores dos favores de Deus. Um tipo de justiça que não corresponde à mesma referida por Paulo. Enquanto a justiça judaica punia, a de Deus pretendia redimir, sob a paciência de Deus. Paulo está resgatando o fundamento da graça – favor de um Deus soberano, por pequeninos que nada podem lhe dar em troca. Assim, todo orgulho, toda jactância são banidos, não havendo mérito ou justiça própria em ninguém. Veja o argumento conclusivo de Paulo: “Porque, se Abraão foi justificado pelas obras, tem de que se gloriar, mas não diante de Deus (...) Ora àquele que faz qualquer obra não lhe é imputado o galardão segundo a graça, mas segundo a dívida. Mas àquele que não pratica, mas crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada como justiça.” (Rom. 4:2, 4 e 5).
Paulo não está falando de um conceito novo. Recorre a um texto antigo de Davi para consolidar seu argumento: “Assim também Davi declara bem-aventurado o homem a quem Deus imputa a justiça sem as obras, dizendo: Bem-aventurados aqueles cujas maldade são perdoadas, e cujos pecados são cobertos. Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não imputa o pecado.
Observando com as lentes de Paulo, justo é aquele que é justificado por Deus de todos os seus pecados. Essa é a justiça primária que os felizes têm fome e sede. Eles reconhecem, que não possuem nenhum direito na relação com Deus. E por isso, sentem-se vazios, famintos, sedentos de uma justiça que é, antes de tudo, paciente, misericordiosa, cheia da graça de Deus. Justiça que, como refluxo da justiça de Deus, alimenta o discípulo de sonhos e esperanças, lhe mantém apetitoso de novos valores morais e éticos. Fome e sede de ver os pobres de espírito herdando a nova sociedade alicerçada na santidade de Deus.

A justiça nas relações humanas
Na perspectiva de Jesus, os “realizados com a vida”, por terem fome e sede de justiça, buscam em primeiro lugar o Reino de Deus e a Sua justiça. Conforme vimos anteriormente, a justiça de Deus é bem mais ampla do que as concepções humanas de direito. Os paradigmas da justiça do Reino são baseados em valores como a mansidão, sensibilidade, misericórdia, amor. Mas, dizer que a justiça de Deus é diferente, não significa dizer que é menor do que o mínimo exigido pela justiça humana, como direito a habitação, alimentação, saúde, educação, lazer, liberdade de exercer a vocação humana. Alguns desses direitos são direitos de se viver a vida como qualquer animal. Habitação e alimentação, por exemplo, antes de serem um direito humano, são um direito animal. E, mesmo que a fonte da felicidade do discípulo não dependa de condições externas, a sua felicidade plena se concretiza num ambiente, aonde as condições mínimas sejam suficientes para a realização plena de todos os seres humanos.
A fome e sede de justiça do discípulo traduz-se na busca e manifestação da justiça entre as pessoas. Na igualdade de dignidade no seio familiar, nas relações de direito justo para todos. Referimo-nos ao princípio bíblico de se requerer mais e responsabilizar mais, a quem tem mais, a quem mais recebeu ou conquistou.
Espero que você esteja acompanhando bem a nossa forma de raciocínio. Falamos primeiramente sobre a justiça na relação do ser humano com Deus. E aí, não temos nada a reivindicar. Ele nos acolhe e justifica pela Sua infinita graça. Mas, há uma outra dimensão da justiça, que se expressa nas inter-relações humanas. E neste caso o discípulo canta com o profeta Amós: “...corra o juízo como as águas; e a justiça, como ribeiro perene”. (Am. 5:24).
No Sermão do Monte quando Jesus encerra o conjunto das bem-aventuranças faz a seguinte advertência aos discípulos: “Bem-aventurados, sois vós, quando por minha causa vos perseguiram e mentindo disserem todo o mal contra vós, regozijai-vos e alegrai-vos porque é grande o vosso galardão nos céus. Pois assim, perseguiram aos profetas que viveram antes de vós”. (Mt. 5:11,12). Os discípulos de Jesus são os irmãos históricos dos profetas. Entender o ministério e mensagem dos profetas, para a partir daí, elucidar a missão dos discípulos, estava implícito nas palavras de Jesus. Na mensagem dos profetas, não há como se fugir da natureza ética da justiça. Nos profetas encontramos várias pistas da justiça relacionada a questões étnicas, políticas, sociais e econômicas.
No chamado “ciclo de Elias e Eliseu” houve confrontação aberta dos dois profetas contra monarcas injustos e seus exércitos opressores. Reagiram as injustiças do rei Acabe e sua mulher Jezabel. Defenderam viúvas e supriram suas necessidades. Fizeram promessas de esperança diante da aflição e desencanto do povo de Israel e Samaria. Isaías, o profeta das boas novas, o evangelista do Antigo Testamento, enquanto anunciava sua esperança escatológica, denunciava as distorções e cinismo dos religiosos (Is. 1:117), incoerência dos políticos (Is. 10:1,2), denunciava a acumulação de bens e desigualdades sociais (Is.5:8), repudiava a depravação moral e as ambigüidades éticas (Is. 5:18-23). O mesmo aconteceu com Jeremias, Amós e muitos outros. Todos foram perseguidos, maltratados; alguns, eliminados da vida.
Logo, a fome e sede de justiça do discípulo é também semelhante a fome e sede de justiça dos profetas, seus irmãos históricos. Portanto, da mesma forma como os profetas, alcançados pela graça de Deus, responderam de maneira ética as demandas dos seus dias, o discípulo contemporâneo tem a mesma responsabilidade.
Infelizes os fastiosos, os sem apetite pela justiça, os indiferentes, acomodados. Infelizes os que não escutam o clamor do pobre e oprimido, não pleiteiam por sua causa.
Felizes os apetitosos, os insaciáveis; os que nunca se fartam de nutrirem-se da justiça Divina.

Bem-aventurados os Mansos, porque eles herdarão a terra

Em geral, a terra é propriedade dos valentes, dos arrogantes. Os grandes conquistadores usurpam e tornam-se proprietários da terra. Eles sentem uma forte compulsão para provar aos outros que na verdade são fortes. Mas, de que adianta conquistar terra sem gente? Aliás, os que fazem guerra, no final das contas, não herdam nada, só destroços. Qual o proveito de conquistar espaços geográficos se não se conquistou ainda o terreno da própria intimidade pessoal, a tranqüilidade do coração, ou a segurança gerada pela certeza de uma singularidade sanada? De que adianta poder e domínio, se construído sobre coisa alguma? Os valentes, os poderosos e os famosos não podem andar a qualquer hora, em qualquer lugar. Sua liberdade de ir e vir é condicionada a presença de inimigos ou bajuladores. Não conseguem viver publicamente pela ameaça de seus inimigos. Não podem desfrutar da privacidade, por conta da invasão de seus bajuladores.
Mais sábio do que alguém que conquista impérios, palácios, cidades inteiras é aquele que tem o domínio de si mesmo, que sabe gerenciar e desfrutar bem de todas as suas potencialidades humanas. Quem ama a vida, como conseqüência herda o espaço do coração de outros. Para o discípulo, herdar a terra só faz sentido quando essa herança for uma herança de irmãos. Por isso, as chamadas grandes conquistas não interessam aos discípulos. Elas existem como uma forma de espoliação e exploração das pessoas. As grandes potências necessitam provar o poder que possuem. Os representantes da religião - em geral sacerdotes - necessitam provar aos clientes o prestigio que desfrutam diante de suas divindades. Cada ser (des)humano vai alimentando a tentação de provar sua força, poder, prestígio. A falta de mansidão consiste na necessidade fictícia de se provar para os outros que se é melhor ou mais forte. Perdemos a mansidão quando instalamos interiormente o paradigma da vitória a partir da derrota do outro. Quando reduzimos a vida a um quadrado cercado de cordas, em cujo espaço tem-se um único objetivo - destruir o adversário que ainda se põe em pé. Numa luta de boxe, por exemplo, o bom é o cara que bate e derruba o outro. A sua condição de ser aceito pelos torcedores acontece na destruição do adversário. Esse é o paradigma – provar que você é melhor, e o seu próximo é alguém de cara na lona. Por sinal, não se fala em próximo e sim em adversários, concorrentes. Os valentes olham para o mundo como uma arena, um campo de concentração. Os mansos vêem o mundo como um espaço abundante - há lugar para todos. E, todas as realizações essenciais à vida podem ser levadas a cabo.

Jesus nos deu exemplo de mansidão
Jesus podia falar de si mesmo como humilde e manso de coração. Tudo por sua condição anterior de Ser eternamente Ele mesmo: “No princípio era o verbo, o verbo estava com Deus e o verbo era Deus... E o verbo se fez carne e habitou entre nós...”. Era o reconhecimento de sua singularidade que dava a Jesus a condição de ser manso. Ele poderia arrogar-se de ser maior do que os anjos. Ele poderia usar poder para humilhar seus opositores. Mas, para Jesus, vencer significava abrir caminho de vida, inclusive, para seus opositores. Jesus fez milagres extraordinários, falou como nenhum outro, morreu de uma forma extravagante e espetacular. E, mesmo que nada disso tivesse acontecido, ele continuaria sendo Ele mesmo. O que fez, não fez para explicar-se, senão, tão somente para que os demais também aprendessem dele. Sua condição de mansidão o levou a conquistar mais gente do que muitos exércitos poderosos. Mesmo avaliando o cristianismo com todas as suas ambigüidades, e admitindo Jesus Cristo apenas como um personagem histórico, ainda assim, a sua mansidão foi mais eficaz do que a espada e os exércitos dos poderosos e tiranos. Ele tem conquistado o mundo como nenhum outro.
Alguém que para se identificar diz apenas: “Eu sou”; é uma pessoa que tem muita consciência de sua mais profunda essência. Desse modo, não há razão para se impor, manipular ou dominar. Jesus, ao dizer: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida", não está usando de presunção, está apenas afirmando a sua singularidade. Ele mesmo é o caminho, o jeito a ser imitado, o modelo de humildade e mansidão. Seus segidores serão felizes e coletivamente herdarão a terra.

Os mansos vivem na dependência de Deus
Os valentes fazem guerra pelo medo de terem seus espaços ameaçados, ou por acreditarem que somente têm o reconhecimento de outros, quando todos os espaços forem seus. Por causa disso, agridem, atacam, aniquilam, agem independentes de Deus. Vivem sob a síndrome da ameaça e por causa disso atacam; assim, são inspirados pelo medo e não pela coragem.
Já os mansos vivem de tal forma a sua condição de ser, que não sentem necessidade de provar aos outros coisa alguma, nem de competir por aquilo que não “é”, pois, para ser não precisam destruir pessoas. Não estamos falando de passividade. Os mansos são proativos, capazes de lutar, desde que o combate deles tenha como foco: a preservação da vida. Possuem coragem suficiente para confrontar as potestades do mal. Conseguem alimentar indignação contra o mal, e por isso superam, resistem e vencem o mal (Ro 12. 9-21).
Desse modo, a ação do discípulo não depende, em essência, da forma como os outros agem. Não se permite contaminar pelo mau que alguém possa lhe fazer. Para o discípulo, manter a integridade, preservar a dignidade significa conservar seu próprio modo de agir sem se deixar manipular pelo poder do mal. É capaz de sofrer o mal; e sendo portador do bem não se permite manipulado pelo poder que o outro lhe oferece para usar a maldade.
Os mansos não são arrogantes, nem violentos, não aceitam nenhuma espécie de violação contra a vida, ainda que dirigida a seus supostos adversários. Se não sentem necessidade de provar a ninguém coisa alguma, não precisam provar, nem mesmo, que são mansos. Para ser gente, os mansos sabem que a única condição é ser e nada mais. E, para ser, é obvio - não se depende de outros, exceto da própria decisão interior de reconhecer aquilo que se é, na dependência de Deus.

Apogeu da mansidão
A cruz foi para Jesus o último sinal visível de sua mansidão. Exercitar consigo mesmo o poder de não usar a violência: Não pedir fogo do céu, não aceitar a espada como instrumento de vingança. Somente alguém com muita consciência daquilo que realmente É, não sente necessidade de violentar, agredir, não sente necessidade, nem mesmo de explicar-se, apresentar títulos, exibir prestígio. Na cruz Jesus estava exposto à sua única condição de Ser. Nela apagam-se todos os adjetivos. Ele é exclusivamente Ele, e nisto consiste toda a mansidão, bem-aventurança, enfim toda a Sua felicidade. O discípulo é desafiado também a negar-se a si mesmo e tomar a sua cruz. Mas, só nega-se quem é manso, e somente quem tem noção do valor de simplesmente ser, é realmente manso.
Infelizes os valentes, felizes os mansos. Infelizes os que para justificarem o fato de não-ser precisam destruir, agredir, violentar, crucificar; pois pensam que eliminando, o outro não-será mais. Felizes os que não precisam usar de nenhuma forma de violência para continuar vivendo. Felizes aqueles que, dotados da consciência de serem feitos a imagem e semelhança de Deus, desfrutam da mais bela de todas as vocações – ser gente. São felizes por permitirem Deus salvar neles as virtudes. Conseguem confrontar, sem medo, seus inimigos, os tiranos, mas podem, também orar e interceder por eles.
Os discípulos são felizes porque serão chamados filhos de Deus, e como filhos de Deus, desejam que o sol e a chuva venham sobre todos os seres humanos.

Escrito por: Carlos Queiroz

Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados

A sensibilidade é uma peculiaridade humana. Frieza, indiferença, apatia são manifestações daqueles que se permitiram macular pelo mal, e, tendo corrompido a natureza humana, tornaram-se infelizes - desumanos. Os humanos vertem lágrimas, choram suas próprias mazelas, sentem na pele a dor do outro, lamentam e ficam indignados diante da crueldade e injustiça dos tiranos. Os que choram são felizes por conseguirem preservar a sua natureza, sua vocação de ser gente. Neste caso, chorar ou manter a sensibilidade é uma virtude nata. À semelhança da primeira bem-aventurança, chorar é também um estado de alma, uma condição espiritual, um modo de ser do discípulo de Jesus Cristo.


Jesus chorou

Jesus sensibilizou-se várias vezes. Foi sensível ao compadecer-se das multidões como ovelhas sem pastores (Mt 9. 36). Lamentou diante do cenário de indiferença, rejeição e incredulidade do seu povo: “Jerusalém, Jerusalém (...) quantas vezes eu quis te agasalhar como a galinha agasalha os seus pintainhos e tu não quisestes” . Jesus chorou diante dos familiares e amigos de Lázaro. Ele sabia que seu amigo ressuscitaria, portanto não era a morte de Lázaro que ele lamentava. Seu lamento, parece indicar sua sensibilidade humana, quando constata a ausência de Algo mais no coração do público. Neste caso específico, a ausência da fé e manifestação do desespero, a não compreensão da Vida. Lázaro estava vivo, mesmo que o corpo já estivesse em estado de putrefação. Acredito que Jesus ressuscitou Lázaro, muito mais para que pudéssemos entender esse mistério transcendente da vida. Jesus invadiu o mundo oculto de Lázaro e o trouxe de volta, para que os viventes pudessem entender que a vida não se acaba no túmulo. Imagino que Jesus estava chorando o fato de que, os vivos, enquanto choravam seu luto, não tinham sensibilidade para perceber a vida desdenhando da morte.


Com-paixão pela vida
Chorar por chorar não indica felicidade, pode ser apenas uma reação fisiológica, uma descarga emocional. Alguns choram por conta de tristezas, frustrações, decepções; outros por estresse e esgotamento. E mesmo que este não seja o choro referido por Jesus, não estamos condenando ninguém por essas manifestações. Aliás, elas são sinais de que ainda existe um ser humano com vida. Só os mortos não choram mais. Para os vivos, o choro pode indicar uma sensibilidade latente, manifesta por causa de perdas, sofrimento, saudade, indignação com a injustiça; e, viver sem tais sentimentos deve ser motivo de preocupação. Mesmo entendendo o choro natural como um bem que todos possuímos, não é sobre este ato lacrimal que Jesus está se referindo. No Sermão do Monte, chorar é mais do que uma função biológica ou uma reação emocional. A sensibilidade do discípulo é um valor interno, é uma virtude daqueles que se percebem bem pela felicidade de serem portadores da compaixão de Deus. Razão de se manifestarem indignados diante de qualquer ameaça contra a vida.
Sendo um estado de alma, uma virtude permanente, pode-se viver a felicidade a despeito das lágrimas ou da lamentação. O choro que gera felicidade é a com-paixão pela vida. Sem esta com-paixão, gemido que intercede, clamor que busca em Deus o socorro para os fragilizados, o choro é mera descarga emocional. Os discípulos choram e são felizes, porque o choro vem como sinal da humanidade interior redimida. Os discípulos reconhecem suas limitações e consequentemente confessam e arrependem-se de seus pecados. E, na terapia da confissão encontram a alegria de serem amados e acolhidos pelo perdão de Deus.
Pedro chorou amargamente, quando percebeu seu descaso, na ocasião em que negou solidariedade a Jesus Cristo (Lc 22. 62). Se de um lado, sua negação foi uma manifestação da indiferença desumana, por outro lado, suas lágrimas foram um sinal, de que, dentro dele existia um ser humano capaz de lamentar sua fragilidade, chorar copiosamente a sua própria desventura. "Os que choram” desfrutam de uma virtude interior, um modo de ser, que lhes propicia felicidade.

Desventura e esperança
São felizes pela capacidade de amar livremente. E, claro, quem ama, sente pelo outro profunda compaixão. Paulo, referindo-se ao seu cuidado pela igreja em Corinto, expressa esse sentimento como se fosse um processo de gestação da vida de uma parturiente: “Sinto como que dores de parto”. João, o Apóstolo, em sua visão na Ilha de Patmos, mais especificamente na visão do trono de Deus (cap.4 e 5), confessa: "...e eu chorava muito...". Chorava pela sua limitação, por não encontrar ninguém digno de abrir e desvendar as revelações do Livro. Mas, seu choro não parece indicar infelicidade, tristeza, desencanto. Muito pelo contrário, indica o despojamento total de alguém que se percebe pobre de tudo, por encontrar-se diante de um conhecimento excepcional, que João procura decodificar em sua apocalíptica. Seu choro manifesta-se como sinal de uma virtude espiritual, capaz de sensibilizar-se e perceber a presença e atuação de Deus na história. Toda a poesia construída por João apontam para um coração repleto de alegria (Ap 5.1-14). Há subentendido no texto, a consciência de um homem realizado com a vida, a despeito da prisão e isolamento forçado. Suas lágrimas são uma espécie de tristeza última - percepção de contrastes: João denuncia o desencanto consigo mesmo e anuncia a esperança no Cordeiro que desvenda a visão surpreendente (Ap 5. 4-10). Contraste evidente na morte e ressurreição de Jesus Cristo. Sob o enfoque do Cordeiro que morreu e ressuscitou, João encontra a felicidade de suas lágrimas - “emoção” profunda, cuja sensibilidade abraça o sentido da vida, mesmo que, à margem da sepultura.
Lembremos que o Apocalipse de João foi escrito para explicitar uma experiência anterior ao livro. Portanto, a sensibilidade de João já estava antes do texto. Sua virtude de ser um bem-aventurado, sensível evidencia-se na forma como registra uma apocalíptica de dores e esperanças. Estou tentando explicar, que utilizamos este texto de João, não para interpretar o texto, mas tão somente para falar de um homem que, por desfrutar da bem-aventurança da sensibilidade, consegue chorar sem mágoas e ressentimentos. O choro de João é semelhante ao quebrantamento dos compungidos pelo amor vindo de Deus. Contrição, que é por si mesma, a alegria do discípulo de se perceber perdoado e amado por Deus.


Lágrimas fertilizadas pelo Espírito
Tem mais: O discípulo é feliz não somente pelo acolhimento do perdão, mas também, pela esperança da consolação proveniente de Deus. No caso específico dos homens e mulheres afligidos e perseguidos por andarem com o Messias, em verdade, eles estavam usufruindo da prometida consolação de Israel (Lc 2:25). Entre eles brotava esse choro - "sensibilidade do Espírito" em processo de parto acolhendo a Criança da manjedoura, o Emanuel - Deus conosco. Chora quem alimenta o faminto, agasalha o despido, hospeda o forasteiro; e assim fazendo, está acolhendo o Filho de Deus (Mt 25.31-46).

O choro que gera alegria, bem-aventurança é o pedido em oração capaz de fertilizar o terreno da alma para habitação do Consolador - "Ora, se vós, que sois maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais o Pai celestial dará o Espírito Santo àqueles que lho pedirem?" (Lc 11.13). E Quem precisa de um Consolador, senão homens e mulheres sob conflitos, perseguições, dores e aflições? Homens e mulheres sensibilizados com as dores dos injustiçados, perseguidos e maltratados? Precisa de um consolador quem chora a saudade da Esperança que ainda vem.

Os que choram estão incluídos no mesmo quadro de referenciais e valores dos profetas. Estão entre as pessoas marcadas pelo batismo do Consolador. Só sente necessidade do Consolador quem realmente chora essa lágrima fertilizada por uma nova vida, por uma "sensibilidade mais profunda" - fôlego do infante que prazerosamente chora a alegria do pós-parto de ter nascido filho de Deus. Sem este fôlego, sopro de Deus, não há choro, não há sensibilidade e não havendo sensibilidade não tem como alguém se perceber feliz.
Os que choram são felizes porque têm, pelo Espírito, a sensibilidade de se colocar no lugar do outro, especialmente dos fracos, aflitos e necessitados. São felizes pela capacidade de amar livremente. E, claro, quem ama, sente pelo outro profunda compaixão. Os que choram alimentam-se das mesmas condições e sensibilidade dos profetas, que movidos pelo Espírito, tinham a felicidade de fertilizar com suas lágrimas os terrenos dos corações aonde semeavam a Palavra de Deus. Tinham sensibilidade e amor pela vida, indignavam-se com a injustiça, lamentavam a dor e o sofrimento impostos aos seres humanos fragilizados (Ne 1.1-3; Lm 1 e sg. ). A despeito de todas as maldades dos desumanos e contradições históricas percebidas pelos sensíveis, os que choram são felizes por serem portadores desta sensibilidade incomum.
Estes que choram como virtude insólita, usufruem da habitação do Consolador e são indubitavelmente felizes. E quanto mais “pneumatizados” pelo Espírito, mais sensíveis se tornam. Essa "sensibilidade do Espírito", a priori a todas as manifestações emocionais; apenas por analogia, pode ser comparada a sensibilidade humana. Mas é de fato, o “gemido do Espírito...” (Ro 8.26-28), que assiste em nossas fraquezas. Assim, quem tem o Espírito, desfruta dessa virtude permanentemente consoladora - "sentimento" transcendente capaz de compungir ao amor, completar e ampliar toda a alegria, realização, bem-aventurança do discípulo de Jesus Cristo - Sensibilidade que permite-se batizar com as lágrimas da consolação.

Escrito por: Carlos Queiroz

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

A Felicidade do Discípulo

Bem-aventurados
A palavra “makarios” é o termo grego traduzido para “bem-aventurados” ou “felizes” e aparece antes de cada virtude apresentada no Sermão do Monte. Não há um consenso de quantas vezes o termo é utilizado nesta primeira parte do sermão. Na maioria das traduções encontramos 9 vezes a palavra “felizes” ou “bem-aventurados”. Nesta primeira reflexão, estamos considerando apenas o consenso generalizado de que a felicidade é o tema central desta primeira parte do Sermão do Monte.

Jesus não estava lidando com um tema novo, a busca da felicidade é tão antiga quanto a história dos seres humanos, existe paralelamente a toda e qualquer manifestação humana primária, até mesmo as consideradas “inconscientes” – conhecimento não perceptível, ou ainda não decodificado. Lidamos com o tema da felicidade como uma “pulsão” humana que não se esgota. E ai, já não podemos reduzi-la a uma categoria científica racionalista. Podemos até analisar as manifestações da felicidade, mas jamais reteremos as surpreendentes maneiras como se evidencia na singularidade de cada pessoa. Reconhecemos também o desgaste da palavra felicidade; de modo que, será sempre necessário estabelecermos distinções da felicidade apresentada no Sermão do Monte e outras ondas de prazer.

A felicidade é um estado de alma, uma condição de se perceber realizado com a vida, um sentimento de paz interior, que tudo indica, nunca se esgota – há sempre um espaço a mais no campo dos sentimentos, que busca ser mais feliz. Por isso, a felicidade está presente na consciência em forma de convicções, valores, realizações, mas também no inconsciente, expressa através de desejos, sonhos e esperanças.

1. O prazer meramente produzido – prazer pelo prazer

2. A felicidade de se viver plenamente a vocação de ser gente - realização pessoal pelo prazer de se cumprir a vocação de ser gente feita a imagem e semelhança de Deus

3. Felicidade transcendente – Alegria que nunca entristece - .... Tudo porque, a felicidade do discípulo nasce na conexão espiritual entre o ser antropológico com o Ser – Aquele Outro, que se busca no espaço da alma, mesmo sabendo que Ele (o Outro) transcende ao último ponto que o infinito humano possa alcançar. No ensino de Jesus, a felicidade é enfocada mesmo que, diante das lágrimas – “felizes os que choram” ou diante da pobreza – “felizes os pobres de espírito”. O discípulo para ser feliz não depende da alegria ou tristeza durante a noite nem das circunstâncias de uma nova manhã. Sua felicidade independe do tempo. Não porque o discípulo tenha domínio sobre o tempo, mas pela sua capacidade de administrar seus sentimentos em relação ao tempo. Seus valores e princípios eternos (não apenas internos), sua capacidade de viver para além das circunstancias ao seu redor, propiciam para o discípulo um sentimento de realização plena.

“Mas agora vou para ti; e isto falo no mundo, para que eles tenham a minha alegria completa em si mesmos”(Jo 1:17). Jesus está falando de um tipo de experiência, que na esfera dos sentimento traduz-se como alegria, mas que em verdade, é apenas uma aproximação, por analogia, da Felicidade incontida, indescritível, indestrutível. Assim como existe o amor de Deus, não poderíamos falar de uma felicidade de Deus? Que, por graça Ele doa aos humanos. Sem essa felicidade transcendente, alegria que nunca entristece, que existe para além das formas, qualquer outro prazer que não esse, é reduzido a instrumentos de reprodução das tristezas e da morte. A felicidade, no Sermão do Monte está contida de dimensões capazes de resgatar o mais profundo significado do ser humano e conseqüentemente, numa experiência de vida que não se esgota no materialismo. Uma espécie de tesouro não material - a traça nem a ferrugem corroem, ladrões não podem furtá-la. Por analogia, esta felicidade é mais fácil de ser percebida na natureza singela das aves do céu e dos lírios do campo. É uma felicidade também relacional como fruto da devoção do discípulo. Cabe ao discípulo a alegria de falar com o Pai Celeste que está em secreto. Doar ao pobre e desfrutar da alegria de doar, ou quem sabe, se for o caso, da alegria de ser recompensado pelo Pai.

O Pai Celeste sabe de todas as coisas, conhece as necessidades antes que elas sejam expostas em oração. Diante dEle qualquer ser humano acolhe um sentimento de esvaziamento, aniquilamento de si mesmo – percebe-se simplesmente, um pobre de espírito. E ai está a felicidade do discípulo. Sua realização plena, sua salvação total. Salvação de si mesmo, de qualquer orgulho, salvação de alegrar-se em qualquer outro ou coisa que não seja o Pai – enfim, salvação de toda a tristeza, frustração, decepção.

A felicidade do discípulo está fundamentada na sua fé. Fé aqui deve ser entendida como uma relação paterno-filial com Deus, de onde brotam os valores, princípios, convicções do discípulo. Pois, na concepção do discípulo, “sem fé é impossível agradar a Deus”. Desse modo, no Sermão do Monte, a fé é muito mais do que um sentimento místico, é mais do que uma realização positivista. A fé, no ensino de Jesus, adquire um caráter relacional e racional, prático, confessional e ético. Na plenitude do sentimento de reconciliação e paz com Deus e na totalidade ética do discípulo de Jesus Cristo encontramos a sua felicidade ou realização plena com a vida.

Resumindo, afirmamos que a felicidade do discípulo consiste primeiramente no reencontro harmonioso com o Ser que é Feliz. A felicidade pela reconciliação com Deus e com a vida. Felizes, portanto, são aqueles que, vislumbrando o Inominável, Indescritível, o Ser que escapa a todas as categorias racionais, se reconhecem demasiadamente indignos, - pobres - não tendo absolutamente nada que possam a Ele oferecer. E são felizes porque, a despeito dessa condição, sentem-se acolhidos e amados por Ele. As demais bem-aventuranças são desdobramentos da conexão do discípulo com a fonte da Vida. Diante do Ser, o ser antropológico (o meu e o seu ser) reencontra as virtudes relacionadas a natureza humana. Por isso: Felizes os que choram – os sensíveis; felizes os mansos; felizes os limpos de coração – os coerentes; felizes os pacificadores, os misericordiosos. A felicidade do discípulo não consiste na recompensa, e sim, na virtude em si mesma. Como disse Spinoza: “A felicidade não é a recompensa da virtude, mas a própria virtude”.

O discípulo sofre e é feliz, não pelo prazer masoquista, mas pela experiência da virtude. Sua felicidade está fundamentada na fé, em sua confiança e amizade com Deus, no prazer de fazer o bem, no exercício de sua vocação de ser gente, de desfrutar de todos os bens que formam o conjunto da vida. Fora da vocação humana, fora da filiação em Deus qualquer ser humano viverá - ou melhor dizendo – morrerá em demasiada tristeza.

Ao discípulo cabe também a tarefa de fazer novos discípulos, e quem sabe, os novos discípulos estarão sujeitos ao sofrimento, e mesmo assim, aquele que arregimenta os novos, se manterá feliz; não pelo prazer sádico de assistir outros sofrendo, mas por encontrar continuadores históricos dos profetas – “regozijai-vos, pois assim perseguiram aos profetas que viveram antes de vós”.

Não há nada circunstancial capaz de roubar a felicidade do discípulo de Jesus Cristo. Toda a sua felicidade independe de circunstancias externas. Ë um tipo de felicidade que não depende de dinheiro, bens materiais, reconhecimento, prestigio, poder e fama. Uma felicidade assim, transcende ao corpo, e conseqüentemente não é limitada pelo tempo, nem mesmo pela morte.

A felicidade ou bem-estar humano abarca dois componentes básicos:

1. “A FELICIDADE OBJETIVA, passível de ser publicamente apurada, observada e medida de fora, e que se reflete nas condições de vida registradas por indicadores numéricos de nutrição, saúde, moradia, uso do tempo, renda per capta, desigualdade, criminalidade,..

2. A FELICIDADE SUBJETIVA, que é a experiência interna do indivíduo, ou seja, tudo aquilo que se passa em sua mente de forma espontânea enquanto ele vai vivendo e agindo no decorrer dos dias e que volta e meia ocupa a sua atenção consciente nos momentos em que ele se dá conta do que está sentindo e pensando ou reflete sobre a vida que tem levado.” (GIANNETTI; 2002:61).

Escrito por,
Pr. Carlos Queiroz.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

LIDERANÇA e as marcas da integralidade

Se deseja conhecer a integridade de um líder, observe os detalhes. Conheça-o na informalidade do lar, no trato com amigos chegados, na conversa ao telefone. O conceito bíblico de sermos fiéis no pouco para sermos colocados no muito pressupõe grau de dificuldade e detalhamento. O pouco nos prova como também nos expõe. É, portanto, no pouco, nos detalhes da vida, que podemos diagnosticar nossas carências e limitações, e ali aprender com o Mestre. Como bem aplicou Platão, filósofo grego: “Você pode descobrir mais sobre uma pessoa em uma hora de brincadeira do que em um ano de conversa”. A informalidade nos expõe com maior freqüência, pois nos encontra em estado de espontaneidade.
Um dos desafios mais difíceis que enfrentamos desde nossos primeiros pais é a tradução de nossos valores espirituais e morais para atitudes espirituais e morais em nossa vida diária. Permitam-me listar aqui, dentre tantas atitudes que buscam a construção de um caráter íntegro, algumas que observo de extrema colaboração neste sentido.
Calar-se: vivemos em uma sociedade onde o simbolismo é elemento definidor das relações humanas. Assim, valorizamos a comunicação verbal, os discursos, as respostas bem colocadas, o jogo de palavras. Se por um lado isto colabora para desenvolver uma comunicação mais ativa, por outro tem nos levado a esquecer o valor do silêncio.
A integridade de um líder é testada na adversidade e uma das atitudes mais comuns perante a adversidade relacional é o confronto. Frequentemente falamos quando deveríamos nos calar, especialmente em contextos ministeriais onde as críticas nos bastidores ganham a nossa atenção e somos levados a reagir de forma desproporcional, desnecessária ou mesmo inapropriada.
Certamente há momentos de falar, fazer-se ouvir. Mas reconheço que os homens de Deus que tenho conhecido buscavam mais o silêncio do que o confronto verbal perante as adversidades, e faziam a obra de Deus.
Um dos grandes investimentos que podemos fazer em relação ao outro é justamente ouvi-lo. Lincoln dizia que, ao dialogar com alguém gastava um terço do tempo pensando no que falar e dois terços pensando no que o outro falava.
A maior dificuldade para se ouvir é quando não é preciso ouvir. Penso aqui em uma figura de autoridade que, em sua presente função, seja um professor, um chefe, um líder de equipe ou um pastor, não precisaria ouvir e poderia tão somente falar. Talvez um dos maiores e mais freqüentes erros.
Não negociar a verdade: provérbios 12:19 nos diz que “O lábio verdadeiro permanece para sempre; mas a língua mentirosa apenas por um momento”. Há certos valores que precisam estar sempre presentes em nossas vidas, relacionamento e processos de liderança. Um deles é não negociar a verdade. Isto inclui, de forma especial, a manipulação da verdade. Refiro-me ao evitamento ou maquiagem da verdade para se contornar um problema ou se beneficiar de um resultado.
Quando a Palavra nos ensina que a posição do crente, o seu falar, deve ser “sim sim, não não”[1] o que se advoga não é uma atitude de extremos: ou sim ou não. O assunto aqui é a verdade: dizer sim quando for sim e não quando for não. No cenário do genuíno cristianismo a verdade não pode ser negociada e ela é um dos grandes blocos que constrói uma vida íntegra.
Abraham Lincoln foi um dos estadistas mais atacados em toda a história dos Estados Unidos da América. Recebeu título de desonesto, corrupto, incapaz, mentiroso e adúltero. O Illinois State Register referia-se a ele como o “político mais desonesto da história americana”. Quando aconselhado a negociar benefícios para os donos dos grandes jornais a fim de que sua imagem fosse poupada, Lincoln respondeu: “Quando deixar este escritório gostaria de sair com um amigo fiel ao meu lado. Minha consciência”[2].
Ao falar sobre a verdade de forma mais objetiva (o que é verdadeiro), posso dar-lhe a entender, erroneamente, que esta é a única forma de verdade que importa. Há uma verdade subjetiva a qual também devemos valorizar. Trata-se da verdade volitiva, ou seja, os motivos que nos levam a agir e reagir. Os motivos que nos levam a fazer algo ou deixar de fazer. A falar e calar. Tais verdades motivacionais precisam ser observadas de perto pois elas representam o atual estado de nosso coração. Muitos líderes podem desenvolver realizações corretas por motivações erradas.
A integridade, que não negocia a verdade seja objetiva ou subjetiva, alimenta um caráter mais parecido com Cristo.
Assumir a responsabilidade: quando nos posicionamos ao lado da verdade normalmente somos chamados a assumir responsabilidades, seja pela irredutível defesa de algo que no senso comum poderia passar desapercebido, seja por falhas e pecados em nossas vidas que precisam ser confrontados, perdoados e abandonados.
Segundo o escritor francês François La Rochefoucauld quase todas as nossas falhas são mais perdoáveis do que os métodos que concebemos para escondê-las. Uma vida íntegra leva em consideração a possibilidade da falha, do pecado e da queda. Ou seja, precisamos assumir a responsabilidade perante nossas atitudes a fim de mantermos a integridade espiritual e moral. E esta é uma das lições mais difíceis de serem aprendidas. O caminho aparentemente mais curto no caso de uma queda - a negação do pecado e sua responsabilidade sobre ele - não é de fato curto pois não nos leva onde Deus nos quer.
Permita-me endereçar líderes que possuem grande dificuldade de pedir perdão de maneira verbal e clara, ou de voltar atrás em decisões tomadas mesmo quando francamente equivocadas. Esta postura provém de um coração soberbo. Uma soberba que lhe faz pensar (mesmo que não de forma gráfica) sobre a sua superioridade. Talvez nutrida pelo seu conhecimento, ou sua posição de liderança, ou sua função de destaque, seus ganhos e merecimentos. Perceba, porém, que este é o caminho de morte. Seu coração, ao negar procurar o outro e falar: errei, perdoa-me, se lança em uma rota de colisão com o temor do Senhor e a sabedoria, o entendimento de que somos todos igualmente dependentes da graça de Cristo para viver.
Há também aqueles que, para reconhecerem um erro e assumirem a responsabilidade o fazem sob protesto e acusações. Refiro-me aos que, perante seu próprio pecado, racionalizam que o outro também pecou, ou é um agressor maior, que não foi leal ou submisso. Grande erro. Estas razões não passam de sombras nas quais tentam esconder seus próprios corações da humildade necessária para o quebrantamento.
Leon Tolstoi sabia que “todos pensam em mudar a humanidade, mas ninguém pensa em mudar a si mesmo” atestando que é sempre mais fácil falar sobre os problemas universais do que sobre o pecado do coração. E Wertheimer escreveu que “somente depois de as termos praticado é que as faltas nos mostram quão facilmente as poderíamos ter evitado”.
Nenhum de nós está isento da possibilidade do erro. Uma das admiráveis atitudes de Davi foi justamente assumir integralmente a sua responsabilidade quando Natan, após falar sobre um que roubara a única ovelhinha do vizinho, afirmou: “este homem és tu”. Davi não deu desculpas. Não racionalizou dizendo: outros fizeram pior do que eu. Nem mesmo tentou explicar suas motivações. Caiu de joelhos e colocou-se nas mãos de Deus. O coração de Davi dizia: “sou responsável”, e este se tornou o homem segundo o coração de Deus.
Que Deus nos ajude a administrar o orgulho e a vergonha, também a humilhação, a fim de assumirmos a responsabilidade pelo pecado e seguirmos em frente no perdão transformador do Senhor.
Aprender com os erros: precisamos compreender que integridade não é uma atitude medida pela ausência de erros, mas pela decisão em não repeti-los.
Quando assumimos responsabilidades o fazemos também em relação aos nossos erros. Precisamos compreender que integridade é um hábito que se ganha na rotina diária quando procuramos agir de forma pura e justa, e mesmo quando isto não acontece, devemos aprender com nossos erros.
Para que assim caminhemos será preciso, primeiramente, desmistificá-los. Dale Carnegie escreveu, na década de 50, o livro Como Evitar Preocupações e Começar a Viver.
Neste livro Carnegie ensina que devemos deixar o medo de encarar os nossos erros. Devemos analisá-los e compreendê-los. Ele usa William James para nos ensinar que a aceitação do que aconteceu é o primeiro passo para se vencer as conseqüências de qualquer infortúnio.
Pensando em líderes devemos compreender o que muito bem foi colocado por Kevin Cashman ao expor que a habilidade que temos de crescer como líderes é limitada pela habilidade de crescermos como pessoas. Jamais devemos distinguir nossa função de liderança (mesmo porque é passageira) de nossa identidade pessoal. Um grande engano em época de empreendedorismo é um auto investimento no perfil de liderança. Não que isto não seja efetivo, porém é passageiro. Investir tempo, forças e energia para se qualificar como um bom líder pode lhe privar de investir tempo, forças e energia para crescer como pessoa e crente. Como líder posso dar-me ao luxo de seguir em frente mesmo tendo cometido erros, porém como pessoa e cristão meus erros, após praticá-los, se tornam minha melhor oportunidade de conserto e crescimento.
Para aprendermos com nossos erros é necessário levá-los a sério. Um temperamento explosivo não é apenas um temperamento forte, mas algo que machuca pessoas, entristece o Espírito Santo pela falta de domínio próprio e nos pretere de vivermos mais tranqüilos com nossas próprias reações. A crítica não é apenas uma questão de objetividade, ou ser direto, como muitas vezes justificamos. A crítica compulsiva é um agente do diabo para a destruição da vida alheia. Um desencorajamento que pode marcar uma pessoa pelo resto de sua vida além de um mecanismo que faz o coração do crítico adoecer com a amargura. Não conheço pessoas críticas felizes.
C.S.Lewis nos ensina que “quando um homem se torna melhor, compreende cada vez mais claramente o mal que ainda existe em si. Quando um homem se torna pior, percebe cada vez menos a sua própria maldade”. Para aprendermos com nossos erros é necessário levá-los a sério, conversar com o Pai sobre eles, pedir forças para mudarmos e amadurecermos, crescermos um pouco mais.
Cuidar do seu coração: o Senhor sonda nosso coração, portanto é nossa imagem interna, e não externa, que precisa de maior cuidado. Em dias de ufanismo e triunfalismo somos levados a procurar sempre o que nos destaca, ou destaca o nosso trabalho. Um grave engano visto que o Senhor não sonda nossos relatórios mas sim nossos corações. Dr Augustus Nicodemus, profundo expositor da Palavra, afirma que Deus não nos chama para termos sucesso sempre, mas sim para sermos fiéis.
Compreender a marcante diferença entre caráter e reputação não pressupõe que faremos uma escolha legítima. É preciso estar disposto a priorizar a verdade. Abraham Lincoln gostava de afirmar que “caráter é como uma árvore e reputação a sombra. A sombra é o que nós pensamos sobre isto. A árvore é a realidade”.
Muitas vezes confundimos inteligência, conhecimento e sabedoria. Podemos aplicar as palavras “a inteligência é uma espada ... o caráter a empunhadeira”, de Bodenstedt, dizendo que é o caráter que delineará a sabedoria no agir. Outras vezes confundimos temperamento brando com bom caráter. Ao contrário, como disse Pierre Azaïz, “o caráter é a esperança do temperamento”. Um temperamento brando, quieto ou mais vagaroso pode dar a impressão de domínio próprio e esconder as paixões mais carnais.
Ele nos “sonda e nos conhece” e julga-nos com exatidão, pesa a nossa alma e categoriza todos os nossos sentimentos mais profundos. Você é quem Deus diz que você é. Convictos desta verdade é preciso crescer. Não priorize o crescimento da sua reputação, ministério ou carreira. São por demais importantes, porém transitórios. Priorize o crescimento do seu caráter e vida com o Pai. Escolha a melhor parte.

Autor, Ronaldo Lidório.