PRIMEIRO PASSO
"Viva a intolerância contra os religiosos."
Novíssimo manual de Conduta
do seguidor de Jesus
de Paulo Brabo para Néviton Marci
do seguidor de Jesus
de Paulo Brabo para Néviton Marci
conversão – ao contrário das pacíficas religiões anteriores, das quais restam algumas, e que preferiam apostar a eventual consagração no milenar e lentíssimo método de transmissão e reelaboração de pai para filho.
O cristianismo histórico foi desde o início, exatamente como nos nossos dias, empreendimento de curto prazo, indústria de resultados. Jesus passou de ilustre desconhecido a único Deus do vertiginoso Império Romano em meros 300 anos – menos que um piscar de olhos
em termos históricos. Não é de estranhar que pelo menos metade dessa conversão nominal do mundo tenha sido adquirida na ponta da espada. A fim de salvar os incrédulos era necessário não tolerar a sacrílega religião deles: os cristãos entenderam o imediatismo do Ide e saíram pelo mundo fazendo inimigos, ostracizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito. Essa dupla paixão pelos resultados e paixão pela publicidade deixam claro que o cristianismo histórico não é o menos eloqüente antecessor do convulsivo capitalismo contemporâneo.
Essa implacável visão de mundo, da expansão numérica e comercial como missão divina, determinou toda a história do ocidente, inclusive a sangrenta colonização das Américas. Em 1454
o Papa Nicolau V resume essa postura geral na sua Bula Romanus Pontifex, em que concede ao rei Afonso de Portugal (e a seu príncipe D. Henrique, que daria forma final à nau oceânica portuguesa e assim o chute inicial às Grandes Navegações), uma singela série de privilégios materiais associados à sua pureza de coração:
“(...) concedemos ao dito rei Afonso a plena e livre faculdade, entre outras, de invadir, conquistar e subjugar quaisquer sarracenos e pagãos, inimigos de Cristo, suas terras e bens, a todos reduzir à servidão e tudo aplicar em utilidade própria e dos seus descendentes (...)”
Nenhuma manifestação do cristianismo institucional dos nossos dias difere, em qualquer sentido importante, da inclinação geral do parágrafo acima. Os filhos do Rei permanecem reclamando seus direitos, absolutamente convencidos da primazia da sua condição. Os religiosos cristãos chafurdam em seus merecimentos, e oram descaradamente para extrair alguma prosperidade dos inimigos de Cristo ou reduzi-los à servidão – o que for mais imediato ou der mais prazer (e é naturalmente graças aos cristãos que cremos que essas duas últimas coisas andam juntas).
Por alguma razão que Cristo não teria como entender, os que se consideram cristãos são os mesmos que se consideram religiosos. E, dentro da mesma lógica ignorante dos fatos, os que não se submetem
à religião são considerados inimigos de Cristo.Talvez baste para você pensar e agir assim, mas se você quer ser de fato como Cristo é absolutamente necessário dar o primeiro e louquíssimo passo na direção de Deus e para longe da religião. Porque Jesus, como deixam abundantemente claro os evangelhos, promovia e aplicava consistentemente uma forma muito particular de intolerância religiosa: a intolerância contra os religiosos. Jesus, que comia com estelionatários, bebia com agiotas e era amigão de prostitutas, tolerava aparentemente tudo em todos.
“Eu não condeno você”, ele ousou blasfemar aos ouvidos da mulher adúltera.
O rabi puxava conversa com divorciadas promíscuas, pousava sua mão sobre leprosos de que todos desviavam o olhar e dormia nas camas rendadas de inimigos do povo. O sujeito conseguiu o feito inédito de sustentar a fama de homem de Deus ao mesmo tempo em que abraçava os puxadores de fumo, traficantes, travestis e aidéticos do seu tempo. Mas havia um limite para a sacanagem que ele podia engolir. A única classe de pessoas que fazia Jesus perder a paciência e a compostura era, formidavelmente, a dos religiosos. Aquele que mostrou-se disposto a acolher sem qualquer transição um criminoso no seu paraíso não tinha uma única palavra de tolerância para os devotos, os carolas, os piedosos, os santinhos. Esses despertavam a sua ira, e para ser como Jesus é necessário – sinto dizer – que despertem também a sua. Para demonstrar de forma conveniente a implacável intolerância de Jesus para com os religiosos seriam necessários quatro evangelhos.
Deve bastar, no entanto, o relato da homérica lavada que levou um fariseu imprudente que convidou Jesus para jantar. Fique pelo menos a lição: se não quer ser como ele, pelo menos não convide Jesus para jantar.
Enquanto ele ainda estava falando, um fariseu pediu que Jesus fosse jantar com ele. Ele entrou na casa do fariseu e reclinou-se à mesa para comer. O fariseu ficou surpreso ao ver que ele não havia lavado as mãos antes da refeição. – Vocês, fariseus – o Senhor disse a ele, – limpam a parte de fora dos copos e dos pratos, mas por dentro estão cheios de cobiça e perversidade. Loucos! Aquele que fez o exterior não foi o mesmo que fez o interior? Dêem como esmola o que vocês têm no interior dos pratos, e para sua surpresa tudo será puro para vocês. Mas ai de vocês, fariseus, que dão a décima parte até da hortelã, da arruda e de toda espécie de hortaliças, mas passam longe do veredicto e do amor de Deus. O certo era que fizessem uma coisa sem deixar de fazer a outra. Ai de vocês, fariseus que amam os lugares mais importantes da sinagoga, e amam ser cumprimentados nas praças. Ai de vocês, estudiosos da lei e fariseus! Impostores! Vocês são como sepulturas não marcadas, sobre as quais as pessoas andam sem saber.
Neste ponto um perito na Lei que estava presente disse: – Mestre, quando o senhor diz isso também está nos ofendendo. Mas ele disse:
– Ai de vocês também, peritos na Lei!Vocês sobrecarregam as pessoas com cargas difíceis de se levar, mas vocês mesmos não mexem sequer um dedo para carregá-las.
Ai de vocês, que constroem mausoléus para os profetas, quando foram os pais de vocês que os mataram. Fazendo isso vocês confessam que estão em acordo com o que os seus pais fizeram: eles mataram os profetas, vocês constroem sepulturas para eles. É por isso que a sabedoria de Deus diz: “Eu enviarei a vocês profetas e apóstolos; alguns deles vocês matarão, outros vocês irão perseguir. Para que dessa geração seja requerido o sangue de todos os profetas derramado desde que foram lançadas as bases do universo: do sangue de Abel até o sangue de Zacarias, que foi morto entre o altar e a casa de Deus.” Eu afirmo a vocês que isso será exigido desta geração.
Ai de vocês, peritos na Lei! Vocês negaram às pessoas o acesso à chave do conhecimento; vocês mesmos não entraram, e impediram os que estavam entrando.
É preciso ainda ressaltar que a religiosa intolerância de Jesus para com os religiosos em nenhum momento esteve voltada para o que chamaríamos mais tarde de pagãos. A Jerusalém do tempo de Jesus era cidade ocupada pelos romanos, apinhada de sacrílegos templos, estátuas, estádios, quartéis, teatros e banhos públicos que os judeus piedosos só faziam condenar. Incrivelmente, não chegou até nós nenhuma palavra de condenação de Jesus contra essas barbaridades; pelo contrário, que Jesus estava favoravelmente familiarizado com a cultura romana fica claro, por exemplo, no uso natural e muito apropriado que ele faz do termo hipócrita (ator, mascarado, canastrão), emprestado do teatro, forma de arte que os judeus de boa estirpe ao mesmo tempo desconheciam e abominavam.
O desconcertante é que, ao mesmo tempo em que tolerava os pagãos, Jesus batia de frente contra os que afirmavam terem o monopólio de acesso ao Verdadeiro Deus. Jesus reconhecia que o
vasto e inclassificável Deus das escrituras hebraicas era também o seu, mas ao mesmo tempo asseverava que os sacerdotes, fariseus e intérpretes que pretendiam tê-lo seqüestrado para si, fechando-o dentro de um sistema religioso estanque, confortável e opressor, não tinham a mínima idéia de com quem e de quem estavam falando.
O primeiro passo para fazer no nosso tempo o que Jesus fez no seu é, incrivelmente, abrir mão de qualquer palavra de condenação contra os ateus, os feiticeiros, os satanistas, os liberais, os wiccans, os macumbeiros, os budistas, os hindus, os animistas – agnósticos e pagãos de todos os matizes. O alvo da nossa intolerância deve ser outro, o alvo que foi também o de Jesus: os que passeiam pelo mundo crendo ter o aval inequívoco e a credencial indelével do Verdadeiro Deus. Aqueles que, nas palavras de Paulo, estão persuadidos de serem “guias dos cegos, luz dos que se encontram em trevas, instrutores de ignorantes, mestres de crianças, tendo na lei a forma da sabedoria e da verdade” – mas que “ensinam os outros sem ensinarem a si mesmos”.
Nós. Quando apenas esses nos fizerem perder toda a paciência e a compostura; quando apenas esses nos levarem a abrir a boca em imprecações e maldição, estaremos sendo como Jesus.
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